sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sopro


oh, fole da palavra-fogo
aplaca este gelo que me fere a língua
derrete esta casca que me oculta o lírio
ora pela asa, pela casa, pela roupa seca no varal
pela tenra semente do alcaçuz
pelo broto de sílica no quintal
pela unha rasgada a punhal
pela contumaz mudez imposta à carne

ora, ainda, pelos gritos engolidos
[ou perdidos em buracos negros]
pelos lábios costurados a fios de aço
pelo corte na cartilagem cricóide
pelas ranhuras neste corpo caloso
pelas feridas
pelas cicatrizes
e pelos meus olhos alados
que não se querem pousar

(Celso Mendes)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A escuta

onde a voz aponta
e o dedo alcança
sangro esta palavra
em riste, como peito
em lança sem escudo
como água em pedra cristalina
como o rugido do fogo
silêncio de horizonte sem auroras
bocejo de luas amanhecidas
solares sorrisos de criança

nos lábios, as digitais
nos olhos, o viajar repleto de sílabas
nas falanges distais, o início

e quando o grito rompe
o eco das estrelas
calo
contemplativo
a escutar o ruflar do universo
pulsando infinitos

(Celso Mendes)

Sobre o que fere

a navalha é a mesma e está rubra
escorre o fel de línguas fendidas
de lábios carmins
de olhos vermelhos
caminho sem volta ao inferno
cereja num copo de vinho
cascas de maçã
rosas de Hiroshima

a navalha é a mesma e está bruta
escorre ao léu em raízes perdidas
de um corte no branco a vazar os seus nadas
rasgo radical na lúdica lucidez
cúmulo cinzento no palato plúvio
poda no verde de um verbo
um silêncio gris
o escuro do giz
muros de Berlim

a navalha é a mesma e contém cicuta
escorre no céu de bocas despidas
no frio do fio um fonema letal
tal arma fatal em dentes alvos
mensagem que ecoa em asas pardas
voo subterrâneo num corpo sem pele
viagem sombria no fibrilar miocárdico
vida sem sol
pulso sem luz
pó de torres gêmeas

a palavra é navalha
e está cravada

(Celso Mendes)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Círculos


Deitava o vento com a boca amordaçada. O seu silêncio era imposição dos girassóis que refletiam-lhe os braços, as mãos e seus dedos amarelecidos. Mascava o sol dia pós dia, desconfiado, e se sentia cada vez mais enraizado. Gostava do azul das manhãs e do laranja das auroras. O marinho da noite o embriagava. Mantinha, secretamente, olhos de nadar estrelas. A lua costumava tocar suavemente suas costas até que adormecesse. Após isso era a o medo da treva, era atrás dos astros, era depois dos sonhos. Se houvera luz, não se lembraria. Mas o tempo sempre lhe foi muito orbital. Não entendia por que as coisas tinham essa mania de orbitar. Retas, pois sim, retas eram apenas uma eterna ilusão de caminhos; nunca mais o levavam a um novo que já não conhecesse. E foi assim que, mais uma vez, o sol se desprendeu do seu bocejo, preguiçosamente. Ainda não era a hora da escuridão.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Sentidos e Direções (II)



guardo, neste embrutecido coração
a visagem dos dias que amanheci
dissecados nas noites
[sinto]

tenho cá
cada paisagem
cada andorinha
cada cena
todos os olhares
o azul, o azul, o azul
[voo]

minhas árvores
têm no verso das folhas
as cores empalidecidas
das flores que pintei
[levo]

sim, e teu sorriso
despetalado
sobrevive-me
arranha-me
machuca
[chovo]

escorro
regatos
paredes
janelas
estradas
miragens
pedráguas
[ouves?]


ao fim do delírio
espera-me
o denso-oceano-destino
a fundir
os fluidos do mundo
[vês?]

(Celso Mendes)

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Incompletudes


já tenho em minha carne
o rangido franco,
frio
e solitário
das horas
indivisíveis.

não mais
me demoro os dedos
sobre o fio da faca
na tangência
de um tempo
que não tenho,

pois que me adormece a luz
nas mãos espalmadas,
privadas de palavras
em um silêncio imortal
que se imprime absoluto.

abasteço,
recorrentemente,
a incompletude desta loucura
com teus olhos fugidios,
insistentemente sádicos

: olhos de amassar maçãs
e envenenar riachos lacrimosos.

e é quando as auroras
se transfiguram
em dias cinzentos
que me doo à chuva.

neste então me voltas,
sob a rama deste ipê,
tal um espectro
entre pétalas violáceas

a me contar
que inda existo.

(Celso Mendes)

domingo, 1 de maio de 2011

Janelas(II)













um outro dia
outros detalhes
um outro vento
outros olhares

cada janela tem sua história
cada paisagem
a cada tempo
uma memória

eu na soleira

(Celso Mendes)

Passeio (repostagem)


hoje visitei a beira do abismo
eu e meu jeans

no fundo, sempre achamos que o tempo não iria passar
acocorei-me sobre o limbo que cobria o chão que pisava
abotoei uma borboleta amarela na lapela
cobri-me daquele sol desbotado e velho
apanhei um cogumelo solitário que insistia em crescer na pedra
cheirei duas nuvens passageiras
mas resolvi não olhar para o espelho do mar

e o azul acima da minha cabeça sempre me desafiando

resolvi seguir pra lá

estou cansado de tentarem me convencer que envelheço


(Celso Mendes)