quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Alfarrábios (repostagem)

percebo uma ruptura que me duplica.

mas sou feito de ferro e concreto,
fissuras não me comovem.
já sou azul e amarelo,
preto no branco,
e uma velha testemunha do conformismo.

o sopro que fere meu rosto
é a prova da fragilidade desta armadura.

redimo-me da canção subalterna a um desejo ocre.

e que não me faltem alfarrábios
para dizer da crueldade dos anjos,
que infernizam minhas noites
e visitam-me nas manhãs opacas
pintando-as de tons pastel,
feito palhas que incendeiam sutilezas
e espalham a fumaça:
ardência dessa angústia nos meus olhos,

asas que se queimam em pleno voo
sobre um chão que já não há.

(Celso Mendes)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Acalanto para abstinências e vazios

                                         é a falta e a lacuna quem cria
                                                                      (Paul Valéry)
é para agasalhar ausências que teço este poema
fantasmas não dormem
anseios me esperam

o que urge além do lábio e da palavra
é o mesmo que me trinca o esmalte dos dentes
vindo da lacuna que ocorre no rastro do voo
de cada pássaro que ousei ser
neste não sentir talhado nos ossos
feito rios secos a riscar-me a pele
álveos calcinados 
onde escorrem congeladas 
a doçura e a tortura
de vozes e olhares idos ou perseguidos
dentro de um pretérito que me bate à cara
ou em um porvir que se me escancara

é para agasalhar ausências que teço este poema
de vazios e de abstinências
e me permito à lagrima
tanto quanto ao riso

(Celso Mendes)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Cantiga de poucos verbos para tanto amanhã

vou
talvez volte amanhã
mas não me esperes

se os dias voltarem
volto amanhã
quiçá depois de amanhã

mas não me esperes

há uma esquina em cada lua
um novo estio em cada dobra da retina
há um horizonte de amanhãs a me secar

hoje só parto
amanhã não sei
talvez eu volte
não me esperes
– não precisa –

só não me esqueças amanhã de manhã
pois bem não sei
se tornarei
se eu haverei
amanhã
de manhã
ou depois

e se amanhã houver
lembra-te de alguma palavra minha
se no amanhã
eu não estiver

e voltarei

(Celso Mendes)