sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Ensaio para um voo cego


Estanca esta minha reza antes que eu confesse
meus dissimulados tempos de angústia incrustada,
forjada secretamente com palavras mudas entre risos breves,
olhares distantes e meias verdades.

O amargo que exalo da língua é a minha defesa
e a lança que aponto em teu peito me fere na alma.

Não deixa que eu diga o que sinto,
que eu sinta o que penso,
que eu pense que sei já saber ser vodu de mim mesmo.

Pois hoje eu queria fazer um poema cortante,
que sangre, que vaze dos olhos, que verta o veneno.
Por isso preparo um altar para o sacrifício:
que o doce lirismo se queime na verve maldita
e o olho dos ventos me arranque essa pele de santo.

Devolva-me cada delírio e meus sonhos alados,
vomita esses meus pedaços que já mastigaste,
retira de minhas entranhas as tuas matizes

e impeça este meu ensaio de um vôo ao inferno.

(Celso Mendes)

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Caminho de Sal


Resvalo nos segredos do mar
e me salgo de azul.

Nos olhos,
a espera das ondas.

Nos pés,
a areia do tempo.

E mãos
nadando
em água-vida
na eterna busca
do não-sei-que.

(Celso Mendes)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A Procura


Já conversei com os deuses
Já repousei vários colos
Escorreguei entre ventres
Bebi do frescor da infância
Ouvi conversa de insetos
Mergulhei infernos
Descansei escuridões
Nadei olhares
Percorri sorrisos
Provei um pouco do céu
Tomei do vinho maldito
Pulei abismos e bocas
Enquanto não me atordoava o giro do mundo

Lunático
Agora persigo o fogo
O gelo
Uma luz distante e desfocada
No rastro das bruxas um brilho de fada
O vento
O centro
E uma improvável paz

(Celso Mendes)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sobre Saudade

SAUDADE - 1

se neste escuro
certa fada rubra
voltasse a brincar de Lua
talvez as noites tivessem
novamente
Sol


SAUDADE - 2

distância é frio
palavra não transmitida, angústia
quando olhos se calam, dói...


SAUDADE - 3


hoje eu quero beber o negro da noite
embebedar-me de estrelas
e silenciar o universo


(Celso Mendes)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Belicoso


em meus dias de aurora de rapina
belicoso
eu roubava raios boreais
e os colocava em meu saco de estrelas
junto às bandeirolas iluminadas
fluorescentes
que apanhava lá no cantinho
do escuro de meu quarto
em minhas madrugadas secretas
antes
bem antes
de se tornarem opacas

(Celso Mendes)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Arreflexia


uma imagem sem luz
adentra-me as pupilas

fotomomento

há um frio circunstancial
a roer-me beiradas

lentifico
súbito, desacelero
o sangue adensa-me

vida-fado
fauno sem flora
face sem linfa
lágrima sem pálpebra
e um abstinente sorriso

onde foi que deixei meu reflexo
que habitava teus olhos?

(Celso Mendes)

domingo, 10 de outubro de 2010

Sobre Romper Barreiras


Eu lanço esta palavra em voo cego
Rasgando este segredo que me envolve.
Que o eco que o silêncio me devolve
Respingue a liberdade a que me nego.

E risco o ar com cores e sabores,
Arrisco conturbar a minha calma.
Bem sei não ter a vida em minha palma,
Mas tenho minhas flores e valores.

Pressinto o que me espera ao fim da reta
E agora eu quero abrir esta comporta,
Saber daquele brilho que me afeta.

Eu rompo a solidão que me conforta,
Desato o nó e então atiro a seta:
Quem sabe o seu trajeto me transporta...

(Celso Mendes)