sábado, 27 de novembro de 2010

Úmido


água de palavra esquecida no coração
lacrimada da mente
presa nos olhos
refletida em madeira mofada
endurada na pedra
vertida em sangue e seiva
tragada do mundo
(bebedouro vitalício do bem e do mal)

hoje decidi silenciar corredeiras
e mimar dois pingos na palma da mão

é triste ver a água chorar

(Celso Mendes)

Observatório


leve-branda
brinca-brisa
verde-calma
viva-folha

lenta-lagarta-veste-cores
dança-asas-voo

longe-branco
pássaro-nuvem
vibrato-vertigem-viagem

passa-passos-passo
guardo-tempo-aguardo
e-aqui-fico-a-ficar

(Celso Mendes)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Cicatrização


apagar teus ruídos
doídos, vermelhos
silenciar
num mergulho
mortal
sem olhares
grito mudo
num peito
rasgado
vazando
e este
sopro
de vida
querendo
voltar
afinal

(Celso Mendes)

domingo, 14 de novembro de 2010

Escolhas

a rasgar pétalas
apanhadas do vento
giro, giro
entonteço, entorpeço
mas toda lágrima tem um preço
e sal

rimas, nem as busco
tenho andado um tanto dispersivo
talvez pelo pólen que me brilha nos olhos
por isso me agarro a grãos de areia

não é o vinho
nem sua mancha

fantasmas habitam em árvores
e nas paredes mora um passado
percorro olhares como a um instante
mas instantes não existem mais

pássaros, sim os pássaros

então me distraio com livros e formigas
há dois contos e um menino perdido na página trinta e um

nuvens, sempre as nuvens

eu calo por não saber gritar
mas minha arma está carregada de palavras
agora entendo aqueles trens
que percorrem trilhos de cristal
e sempre partem

ingresso nessa frágil viagem

caminhos
quantas vezes precisei deles

(Celso Mendes)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Flores de Tempestade


teu olhar se perde de mim

atrás das retinas
o segredo
de uma chuva intensa
pinga em flores mortas
que juntos plantamos
molha meu desejo
rega-me a saudade
e escorre
meio ao limbo
indecifrável
de mulher
onde
em meus sonhos mais rubros
tento
ma(i)s não adentro
jamais

(Celso Mendes)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Motivo

rabisco letras sobre um vazio

insisto

eu nem queria dizer da simplicidade da areia
ou da complexidade da semente

queria somente ousar
algumas palavras
aprisionadas
e seguir
em paz

(Celso Mendes)

sábado, 6 de novembro de 2010

Descobertas


por trás das montanhas verdes
o segredo das flores
dos prédios espelhados
história de casarões
dos pontilhões e estradas
a areia da praia
da água brilhante
o Sol
da concha do caramujo
tesouros
do caminho das nuvens
este corredor
da música
o sorriso
dos olhos
o desejo
da pele
o fogo

(atrás do gelo)

CELSO MENDES

Ruptura


olhares disformes
em cenas sem cor
desenham futuros do pretérito
e presentes incongruentes

uma esperança de pedra
um caminho, nenhum rumo
o rastro
delírios permanentes

no fio da faca, a pele e o corte
da luz na retina, só sombra
do pacto, o impacto
de reviver
esta velha
e solitária
comunhão

(Celso Mendes)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Poema Abissal


gutural
este grito
aprisionado
lançado
entre o azul-perdido
que persigo
e o negro-nada
que me cala
enquanto a palavra
imersa
fria
aguarda o voo
mas se faz mergulho

(Celso Mendes)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sobre folhas e um gato amarelo


Resolvo andar em volta do quarteirão onde sempre vivi. Saio e respingam dois segundos de um cheiro de liberdade. Abaixo-me para amarrar os sapatos e a boca amarga recorda o doce por um breve momento. Entardece e o vento gelado brinca de queimar faces. Reviso a calçada esperando luzes acenderem de postes calados enquanto pardais piam alvoroçados no seu recolher. O gato amarelo de listras negras continua dominando seu território e ainda pensa ser leão. Os cães ladram, mas estão presos. E o outono vai derrubando mais folhas das árvores, que esperam, tristes, um inverno tão próximo. Eu sei que a velha esquina me observa, mas continuo a caminhar, disfarçando aquela apreensão de que o tempo insiste em querer me matar. É que às vezes me esqueço que já descobri que o tempo é uma farsa, ele não existe, que eu apenas sou. Mas não conto nada para as árvores. Volto pra casa.