o outono só esquenta as vísceras enquanto dorme
só avia pecados em segredo e silêncio
enquanto ora, dissimulado, às folhas secas em escalpo de rosa
pelo espinho que murcha, mas ainda fere
o outono só aquece em olhos úmidos
seca-lhes paisagens sem lhes roubar a vida
como a impor a dor na sombra de uma translação
onde o frio flui impiedoso e ocre sobre cabeças e pés
inabaláveis ou frágeis
o outono só é quente em minha mente insana
que insisto balançar a um sol detrás de um muro
e tranco junto a sonhos findos e repaginados
quase adormecidos, imobilizados
pedaços de um passado a me planar impunes
prensados pássaros sem céu
sementes pálidas sem broto
luz que se aprisiona a espera do inverno tão próximo
deste teu olhar de pingo de jabuticaba em fruta-carmim
[pomo de dar fome em olhos meus]
abasteço-me
teço sonhos, enfeito ares
broto-me água de pedra ressequida
e fluo-me a ti
navegante e rio
rasgo leito rochoso
a debulhar as folhas
[que te ofertarei verdejantes]
das margens deste trajeto
rumo cachoeira/lago-alvo
onde nadarei
cegamente
teu sal
e me afogarei
sôfrego
em teu sol
este arremedo de pensamento que me assola
estanca preces
robotiza quimeras
volatiza desejos
havia um tempo
em que os sentidos eram rubros
mas os dizeres eram vãos
e cada frase surda
escondia sua poesia
atrás de dispersivas pupilas
agora é o nada impresso nos dentes
a mastigar silêncios
de um discurso mudo
cansado e desconectado
aonde pousaram
as palavras
que te lancei
a cada olhar proferido
e que se perderam
como fécula em boca nua
como férula a ferir espaços
como ímã em contramão?
Queria o azul. À medida que se encantava, adentrava-o, cada vez mais denso e escuro. Queria mais e mais azul. Queria as preciosidades bem do fundo do azul mais fundo, que o atraia, traiçoeiro. Havia verdes no seu caminho, mas era o azul que o cegava. Era o reflexo do céu na escuridão abissal. Imensamente azulado, vertiginosamente fluido, seu mundo bailava cada vez mais cobalto e paradoxalmente mais brilhante à medida que mais sombrio. Compreendeu por que o amarelo era passado, como folha de um velho livro. Entendeu por que água era essência e presente. Vida. Só não percebeu sobre a dose. Bem que o rubro na face quis alertá-lo dos vermelhos no caminho. E tudo girava, comprimindo-lhe os sentidos. Lembrou-se do dourado do sol, do sorriso materno indescritivelmente meigo, dos campos floridos, dos amigos a lhe pular nas costas, de estrelas, de estradas, de voos, dos peixes e dos monstros, que deixava para trás enquanto mergulhava até o seu limite. Atingiu o sonho, torporoso e maravilhado com toda aquela magia anil à sua volta. Sentia braços o envolverem, insistindo para que ficasse. O medo durou pouco. Adormeceu; profundamente. Depois flutuou eternamente leve, como pássaro planando um azul todo dele.
Alguém que percebeu que manipular palavras, rompendo suas significâncias triviais, pode revelar muitos segredos. Médico. Escrever: um hobby.
Publicações:"TRAJETÓRIAS", pela Editora Utopia, além de participação na publicações da "Segunda Antologia do Bar do Escritor" e também da terceira antologia do Bar do Escritor denominada "BDE, terceira dose".